Os Filhos de D’us em Gênesis 06:01 a 04 Segunda Parte


3. Estudo exegético de Gênesis 6:1-4

3.1. O texto

                        Num primeiro passo, procuraremos confirmar os limites da passagem e lidar com seus principais problemas textuais antes de trabalhar numa tentativa de identificação dos "filhos de Deus".

3.1.1. Delimitação da perícope

                        Gênesis 6:1-4 é normalmente considerado como uma unidade literária pela maioria dos exegetas24. De fato, a temática desses quatro versos demonstra que eles estão intimamente interligados. Além dessa unidade temática, o texto foi construído de tal forma a claramente indicar sua unidade:

(1) A expressão wayhî … introduz a perícope de Gênesis 6:1-4. Uma fórmula semelhante irá introduzir a seção seguinte (Gn 6:5-8), em que lemos wayyar’ YHWH Portanto, a fórmula w… abre cada uma dessas seções.
(2) No vs. 1, temos a seguinte frase
ûbenôt yulle lâhem, essas palavras encontram ressonância no vs. 4, na frase `el-benôt âdâm weyâle lâhem. Apesar do vs. 1 tratar da questão das filhas que nasceram aos homens, enquanto que o vs. 4 trata dos Nefilim nascido por meio das "filhas dos homens", a seqüência de palavras usadas nos dois versos é muito próxima, e, num nível mecânico, elas se repetem. Essa repetição mecânica parece formar um inclusio que enquadra os limites da passagem.
(3) Outra repetição mecânica encontrada no início e no final da passagem é observada também no uso das expressões "filhos de Deus" e "filhas dos homens" que aparecem no início do vs. 2 e do vs. 4.
4) O advérbio de tempo encontrado no vs. 4 ("naqueles dias") nos remete ao vs. 1, onde é dito que o homem tinha se multiplicado sobre a terra. Essa referência temporal parece corroborar com o vss. 1 e 4 como um inclusio a essa unidade textual.

                   No seu contexto amplo, Gênesis 6:1-4 pertence à primeira parte do livro de Gênesis (capítulos 1-11) a qual trata de temas universais e a questão das origens25.

                       Hoje, é amplamente reconhecido que o livro de Gênesis foi organizado e estruturado com base em genealogias. Cada nova seção do livro é introduzida pelo termo "genealogia" (tôledôt)26, e Gênesis 6:1-4 pertence à segunda genealogia, a genealogia de Adão (5:1-6:8).                                       

                   Na divisão massorética do texto bíblico, nosso texto pertence ao Seder dálet (5:1-6:8)27, o qual corresponde exatamente à genealogia de Adão. Alguns tomam Gênesis 6:1-4 como uma unidade isolada, sem ter qualquer ligação com o material que a precede e a segue28.

                     Outros a consideram como uma introdução à história do dilúvio que vem logo em seguida29. Outros, no entanto, a consideram como uma conclusão à genealogia de Adão30. Devido a organização do livro de Gênesis em "genealogias", nos parece que o último ponto de vista é o que faz mais justiça ao texto. Essa seção, a genealogia de Adão (5:1-6:8), descreve, junto com o capítulo 4, a história do mundo antes do dilúvio. 

                    Ela começa com uma referência à criação de Adão, descreve a multiplicação dos seus descendentes, e conclui com o anúncio da destruição total de todo ser vivo na terra. Gênesis 6:1-4 pertence ao último estágio dessa seção, vindo justo antes do anúncio da destruição total (6:5-8), e é nesse contexto que a passagem precisa ser entendida e analisada.

3.1.2. Problemas textuais

                        Gênesis 6:1-4 não apresenta muitos problemas textuais. De fato, no texto só existem dois problemas: o primeiro está relacionado com a expressão beshagam do vs. 3, a qual é normalmente entendida como um composto da preposição be ("em"), mais o relativo she ("que") e o advérbio gam ("também"), tendo a expressão como um todo o sentido da conjunção "porque".          

                  Vários manuscritos lêem beshagâm, ou seja, o infinitivo construto do verbo shâgag ("errar, pecar sem pensar"), precedido da preposição be ("em") e seguido do sufixo pronominal -âm ("eles, deles"), o que teria o significado "ao eles errarem" ou "ao pecar eles". Segundo o testemunho das antigas versões bíblicas, a leitura beshagam ("porque") parece ser a mais provável31. Assim, essa expressão seria um paralelo à expressão composta hebraica ba’asher ("porque")32.
A segunda questão textual envolve o verbo yâlad ("nascer") no vs. 4.                                 

                   O texto samaritano tem um 3º. masculino plural, imperfeito hifil com vav consecutivo (wayyôlîdû), fazendo assim dos "filhos de Deus" os sujeitos do verbo; enquanto que o texto massorético tem um 3º. comum plural, perfeito qal com vav conjuntivo (weyâle).                                                                                  

                       A forma massorética é ambígua, podendo se referir tanto a um sujeito masculino ou feminino (ver Gn 4:17-18). Visto que o verbo é precedido imediatamente pelas palavras "as filhas dos homens", elas aparentam ser o sujeito do verbo.                                                                                                               

                    O texto da LXX é tão ambíguo quanto o massorético, enquanto que o Targum lê um 3º. feminino plural33. Pela sua ambigüidade e o aparente apoio da LXX, o texto massorético parece ter uma maior probabilidade de refletir o texto original. A forma do texto samaritano parece representar a compreensão de um antigo escriba, como o faz o Targum.

3.2. O contexto

                          Na seqüência do estudo, será dada atenção ao contexto literário no qual Gênesis 6:1-4 se encontra, como também à sua estrutura literária.

 

3.2.1. Contexto literário

                        Como já discutido previamente, Gênesis 6:1-4 pertence à segunda genealogia do livro de Gênesis, a genealogia de Adão (5:1-6:8). Foi observado também que essa genealogia, junto com o capítulo 4, descreve o mundo antes do dilúvio.                                                                                                                         

                  Essas duas seções têm muitos elementos literários em comum que as interligam entre si. Essa interligação parece prover indícios importantes para a identificação dos "filhos de Deus" em Gênesis 6:1-4.


            Um desses elementos literários em comum é o fenômeno das várias semelhanças que ocorrem na descrição das descendências de Caim e de Adão relatadas nos capítulos 4 e 534. De fato, nas duas listas aparecem muitos nomes com as mesmas formas ou com significados muito próximos.

                    O mais marcante é o fato de que ambos relatos atingem clímax aparentemente ao mesmo tempo o tempo de Lameque e seus filhos na linhagem Caimita (Gn 4:19-24), e tempo de Noé, filho de Lameque, da linhagem Setita (Gn 5:28-32).                                                                                      

                  Isto parece indicar que ambos relatos correm paralelo um ao outro, e o clímax é atingido no tempo junto antes do dilúvio.
                   Outro aspecto marcante, é que ambos os relatos se encerram com uma seção de transição. O relato Caimita é encerrado por Gênesis 4:25-26, versos que servem também para introduzir na seqüência a descrição da linhagem Setita. Já o relato da linhagem Setita é encerrado por Gênesis 6:1-8, versos que também introduzem a história do dilúvio.                                                             

              Entre essas duas seções de transição existem muitas idéias e expressões paralelas que parecem indicar uma correspondência literária entre si. O 3º. singular perfeito dual do verbo yâlad (yullad) em 4:26 parece estar em paralelo com forma do 3º. plural (yulledû) em 6:1. 

              Estas são as duas primeiras ocorrências do dual de yâlad em Gênesis, e a forma só será usada novamente a partir do capítulo 10 em diante. Além do pual do verbo yâlad, ocorre também a repetição do verbo châllal ("começar"). Em 4:26 é dito que o homem "começou [hûchal] a invocar o nome do Senhor"; já 6:1 diz "quando o homem começou [hêchêl] a se multiplicar".                 
                 
A repetição dos verbos
yâlad e châlal
em 4:26 e 6:1 aponta para existência de um paralelismo entre ambos relatos. Além desses termos, a expressão "tomar mulheres" em 6:2 reflete o uso da mesma expressão em 4:19, onde é dito que Lameque tomou para si duas mulheres.                                  

                  O paralelismo entre os dois relatos é também sugerido pelo uso de outras expressões semelhantes como "foi o pai de", ou "tornou-se o pai de", "nasceu", "filho", "filha", etc.
                   Esse paralelismo literário parece indicar que ambos os relatos correm paralelo um ao outro, até atingirem o clímax, a situação do mundo justo antes do dilúvio.    

               Dentro desse paralelismo, portanto, Gênesis 6:1-4 descreveria o momento quando os "filhos de Deus", homens da linhagem Setita, passaram a ter o mesmo tipo de atitude que Lameque, o descendente de Caim, descrita em Gênesis 4:19-24. Estaria então Gênesis 6:1-4 descrevendo a fusão das duas linhagens que tinham sido descritas até então? Este parece ser o caso. Gênesis 6:1-4 usa diretamente o vocabulário e os temas que foram construídos nos capítulos precedentes e assim lemos acerca de "filhos", "filhas", "homem", "terra", os verbos "começar", "nascer", "tomar mulher", etc.
                  Logo, o contexto literário parece apontar para a identificação dos "filhos de Deus" como seres humanos e não como seres celestes ou divinos.

 

3.2.2. A estrutura literária

                        Gênesis 6:1-4 parece ter uma estrutura bem simples, a qual poderia ser dividida em quatro partes, cada uma correspondendo a um verso35, assim teríamos:

Declaração introdutória

A crise

Ojuízo…vs.3

Conclusão vs. 4

                   Esta estrutura simples claramente declara que o juízo (vs. 3) segue a crise (vs. 2) e que está intimamente relacionado com ela. A descrição do juízo divino no vs. 3 concerne o grupo envolvido na crise do vs. 2 e o descreve coletivamente como "homem, pois ele é carnal" 36.            

                Portanto, vs. 3 parece confirmar a direção apontada pelo contexto literário, como discutido acima. A estrutura da passagem indica que o clímax da história pré- diluviana foi atingido na fusão de toda humanidade, das linhagens Setita e Caimita, em uma unidade em estado de rebelião contra Deus.
                   Além disso, os vss. 2 e 3 ressoam vss. 5 e 7,
37 reforçando a identificação dos "filhos de Deus" como seres humanos:

6:2 Os "filhos de Deus" vêem que "as filhas dos homens" eram boas (formosas)
6:5 Deus vê que os pensamentos do homem eram maus
6:3 O Senhor disse, "Meu Espírito não agirá para sempre no homem"
6:7 O Senhor disse, "Eu destruirei o homem"

                   Os "ecos" existentes entre esses versos sugerem que cada ação está relacionada com a outra. A ação dos "filhos de Deus" está relacionada com os "pensamentos do homem" do vs. 5, indicando assim um paralelismo entre "filhos de Deus" e "homem". Vss. 3 e 7 apontam para a humanidade como um todo. Portanto, as expressões "filhas dos homens" e "filhos de Deus" pertenceriam ao domínio humano.

3.3. A identidade dos "filhos de Deus"

                        Nas seções anteriores, vimos que tanto o contexto literário como a estrutura do texto apontam para a identificação dos "filhos de Deus" como seres humanos. No entanto, duas questões ainda permanecem e necessitam ser respondidas concernente a identificação dos "filhos de Deus".                  

                   A primeira questão: Se os "filhos de Deus" foram seres humanos, teriam sido eles necessariamente membros da linhagem Setita? Não poderia ser uma referência a reis ou a poderosos governantes, como sugerido na Interpretação Real?

                       

                         A segunda pergunta: Se eles eram seres humanos, como entender a expressão "filhas dos homens", que parece usar o termo "homem" de forma genérica e não como uma referência a um grupo específico?38
Concernente a primeira questão, o texto bíblico parece dar uma indicação quanto à identificação dos "filhos de Deus" em Gênesis 4:26 e 5:1-3.                                

                    Primeiramente, Gênesis 4:26 descreve o início do relacionamento entre um grupo religioso organizado, os descendentes de Sete, e Deus39 Tem sido observado, pelos defensores da Interpretação Setita, que dentro do contexto de uma relação religiosa e de fidelidade a Deus seres humanos têm sido chamados de "filho de Deus" na Bíblia40.                                                                    

                   Além disto, Gênesis 5:1-3 tem algumas características peculiares. Na apresentação da genealogia de Adão, vs. 1 retorna à criação e apresenta Deus como o primeiro membro nessa genealogia.

               Ele criou o ser humano segundo a Sua imagem (demût). Do mesmo modo, Adão gerou seu filho Sete segundo a sua imagem e semelhança (demût e tselem41). Deus é aqui claramente colocado como o primeiro membro da linhagem Setita e Sua ação de criar o homem é posta em paralelo, pelo uso do mesmo tipo de palavras, com a ação de Adão de gerar um filho.                                               

                      A ação de Deus e a de Adão são colocadas no mesmo nível no relato genealógico. Deus é verdadeiramente o pai do ser humano (Adão e Eva), quanto Adão era o pai de Sete. Com uma identificação tão clara no início do capítulo 5 não é surpreendente encontrar uma referência aos descendentes de Sete como os "filhos de Deus" em Gênesis 6:1-4.

              Quanto à questão acerca das "filhas dos homens", pode-se observar um fenômeno semelhante no texto bíblico.                        Enquanto no caso dos "filhos de Deus" a referência foi feita ao primeiro membro que aparece na genealogia de Adão, ou seja, a Deus (Gn 5:1); a referência às mulheres caimitas é feita em relação ao primeiro membro da linhagem de Caim, ao Homem (Adão e Eva, ver Gn 4:1)42.              

                  O texto bíblico lê literalmente "filhas do homem [Adam]" (benôt âdâm). Assim as expressões "filhas dos homens" e "filhos dehomem [Adam]" (benôt âdâm). Assim as expressões "filhas dos homens" e "filhos de Deus", em Gênesis 6:1-4, teriam sido enquadradas pelos relatos genealógicos que as precederam nos capítulos 4 e 5. Ambas as expressões parecem fazer referência ao primeiro membro mencionado nestas genealogias.